História às margens

 

História às margens: geografias políticas mundiais e fronteiras territoriais indígenas entre os Andes e a Amazônia no período (pré)colonial e suas repercussões contemporâneas.

Os termos comumente usados nas cidades amazônicas atuais para se referir a parte superior dos sobrados, mais valorizada (“altos”), e a parte inferior, no térreo, mais sujeita aos problemas citadinos (“baixos”), chamam atenção para o cerne da discussão à qual este projeto pretende refletir, isto é, a criação, consolidação e sua consequente repercussão no mundo contemporâeno da dicotomia entre Andes e Amazônia, ou entre “alta” e “baixa cultura” na história indígena dos povos sul americanos (GEERTZ 1978). Tal dicotomia se reverbera em oposições amplamente difundidas para explicar a diversidade dos povos ameríndios, tais como cultura versus natureza ou civilização versusbarbárie (LEVI-STRAUSS 1974, VIVEIROS DE CASTRO 2002). Categorias localizadas no seio da colonialidade do poder e do saber e na “diferença colonial” (Migonolo 2005; Quijano 2005), que além de reforçar as práticas colonialistas oriundas do período colonial, pouco contribuíram para nossa compreensão das sociedades indígenas, suas relações de troca, guerra, comércio e parentesco, principalmente no que se refere à área entre as terras altas dos Andes e as terras baixas da Amazônia. É neste contexto que o projeto “Histórias às Margens: geografias políticas mundiais e fronteiras territoriais indígenas entre os Andes e a Amazônia no período (pré)colonial e suas repercussões contemporâneas pretende se inserir. Através da prática interdisciplinar de pesquisa da História Indígena, pretendo entrelaçar problemáticas e práticas de pesquisa oriundas da História, da Antropologia e da Arqueologia (CARNEIRO DA CUNHA 1992).

 

Esta pesquisa tem como objetivo a compreensão da criação da noção de fronteira (Barth 1969) e os seus efeitos no sentido de obliterar as múltiplas e ainda pouco exploradas relações entre as terras baixas da Amazônia e as áreas altas da região Andina, mais especificamente a área localizada atualmente entre as porções leste da Bolivia e do Peru e a Amazônia ocidental brasileira. Nesse sentido, busca fluidificar uma dicotomia instaurada ainda no período colonial entre as chamadas civilizações Andinas e as zonas florestadas das terras baixas, ocupadas por populações indígenas que ficaram conhecidas como ahistóricas, com formas sociais menos estáveis, e cujas formas de organização seriam horizontais, sem a formação de um Estado (CLASTRES 2003). Consolidada no século XX pelas categorias classificatórias de cunho evolucionista promulgadas no Handbook of South American Indians no âmbito da Antropologia, essa ruptura foi decisiva tanto para orientar os recortes acadêmicos posteriores acerca das populações ameríndias, quanto para oficializar uma certa história destas populações e regiões (Monteiro 1994, Carneiro da Cunha 1992, Almeida 2017, Sposito 2006).

 

Refletir sobre as sobreposições e articulações entre as populações dessas regiões separadas à época da conquista espanhola e portuguesa, pode nos revelar formas de interações interétnicas que vão além das fronteiras sócio-ambientais tão reificadas nas categorizações ocidentais. Os modelos de cultura ocidentais pautados em torno do poder do Estado, da economia agrícola e da materialidade monumental da permanência, re-encontrado na noção de Patrimônio Cultural “de pedra e cal” no início do século XX se opunham aqui a transitoriedade dos ritmos da caça e coleta, manejo agroflorestal e construções orgânicas. Para tanto, volto-me para a análise de fontes históricas, arqueológicas e etnográficas que possam fornecer indícios das distintas relações estabelecidas entre as diversas populações indígenas que viviam nesta região extrapolando as fronteiras estabelecidas. Especial atenção será dada às fontes históricas e narrativas mitológicas, aos resultados de pesquisas arqueológicas e iconográficas e aos dados sobre as formas de uso e transformação dos territórios pelas populações indígenas contemporâneas e pretéritas. O tema do território é aqui incorporado, tendo em vista as recentes abordagens nas quais ele tem sido considerado um importante eixo de relação entre as populações humanas, suas criações de identidade e temporalidade (Oliveira 2016; Escobar 2005). Nesta perspectiva os mosaicos paisagísticos da atualidade descortinam-se como acúmulos de temporalidades que carregam em si afetividades e memória associadas a redes de parentesco e suas respectivas cosmovisões (Gow 1997, Rival 1998, Machado 2012), aspectos estes que podem nos oferecer uma rica interpretação sobre as histórias indígenas da região.

As redes contemporâneas dos povos indígenas cada vez mais visíveis nos contexto sócio-políticos sul americanos, se por um lado reificam as fronteiras construídas (vejamos por exemplo o caso do estado Multicultural Boliviano que re-articula fronteiras étnicas entre Andes-Amazônia em posições políticas de subalternidade), por outro permitem a visibilidade cada vez maior de dados históricos, etnográficos e arqueológicos que revelam a diversidade de complexidade de formas de interação existentes entre estes povos no contexto pré-colonial e seus novos arranjos históricos a partir da situação colonial.